domingo, janeiro 02, 2005

SOBRE A FAMÍLIA

Ontem ao fim do dia, estava eu feliz e contente a borregar em casa quando de repente, recebo um sms de um familiar próximo que continha a seguinte mensagem: "Ano Novo! Vida Nova!... Nunca um ditado esteve tão errado...". Como não estava assinado, demorei algum tempo para conseguir descobrir a quem pertencia aquele número de telemóvel, mas por fim lá consegui.

Tal como devem calcular, pertenço a uma família que, ainda que original, é altamente tóxica. Por isso, achei aquela mensagem inspiradora. Armei-me com uma caneta e o meu bloco de notas e comecei a escrever. Para falar sobre este tópico, socorri-me igualmente de um dicionário de língua portuguesa e assim, diz o dicionário de língua portuguesa da Porto Editora que: Família, s.f. pessoas do mesmo sangue; linhagem.

De seguida procurei o significado de familiar. Então diz este mesmo dicionário que: Familiar, adj. 2 gén., que é da mesma família; caseiro; doméstico; habitual; simples; s.m pessoa da família; intímo; criado; ofícial da inquisição.

Nos significados que encontrei expressos neste dicionário, a nenhum deles foram imputados juízos de valor de ordem moral. No entanto quando se fala de família, seja em sentido núclear (pai/mãe/filhos), ou seja em sentido mais abrangente (parentes em vertentes colaterais), parte-se do príncipio que o cenário é ídilico. Parte-se do príncipio que as relações entre os diversos sujeitos que constituem a família pertencem ao estereótipo de paz, de harmonia e de solidariedade. Ou seja, fala-se como se o resto do mundo fosse constituído por homens e a família constituída por santos esquecendo-se - ou fazendo por se esquecer - que toda a medalha tem o seu reverso. Isto é, que todas as relações de paz, também podem ser de conflito; que todas as relações de harmonia, também podem ser de desentendimento; e que todas a relações de solidariedade, também podem ser de não-solidariedade.

Para muitos ideia de uma relação de desentendimento com um famíliar próximo é algo perfeitamente inconcebível e totalmente fora, daquilo que consideram um padrão comportamental normal. Vivem na eterna utopia de que à família tudo pode (e deve), ser perdoado. A questão que vos coloco é, porquê?

Uma família, independentemente da sua dimensão, é constituída por uma teia de relações entre os indivíduos que a compõem e todas essas relações têm como base de sustentação, aquilo a que comumente chamamos de confiança. Ora, numa situação extra-famíliar quando o sustentáculo da relação sofre um abalo (Richter ou Mercalli, cada um escolhe a escala que entender), a relação - se não se quebrar - fica automaticamente fragilizada. E isto é por todos aceite como, normal. Então se fora do contexto famíliar isto pode ser considerado como um padrão de comportamento normal, porque é que dentro do contexto famíliar não o é?

Penso que a resposta a esta questão reside no campo dos valores éticos e morais do indivíduo e não na lógica dos relacionamentos inter-pessoais. Para a maioria dos mortais parece que a consanguínidade integra em si mesmo, um príncipio universal em tudo idêntico ao "não matarás" e isso parece, também, ser o suficiente para justificar a ideia de que à família tudo se perdoa.

Bom, infelizmente não pertenço a esta categoria de indivíduos (e digo infelizmente, porque se calhar seria muito mais feliz se assim não fosse). Mas sobre isto, há muito mais que se lhe diga porque eu não só, não pertenço a esta categoria de indivíduos, como acredito que todos aqueles que desta fazem parte, demonstram uma capacidade extraordinária em acumular experiência que, é directamente proporcional à sua incapacidade de transformar essas experiências acumuladas em sabedoria.

Porque razão isto acontece, não sei. No entanto posso dizer-vos que as pessoas que integram as fileiras desta categoria, têm um perfil tipicamente paternalista. Ou seja:

- Acreditam que já aprenderam tudo o que havia para aprender;

- Acreditam que o seu modelo de vida, é o mais correcto;

- Acreditam que o seu papel é o de pastor que orienta o rebanho;

- Acreditam que a integração da diferença é feita pela uniformização ao seu modelo de vida que, no seu ponto de vista é, também, o mais correcto.

No processo de conversão do outro ao que consideram como o mais correcto, os indivíduos que integram esta categoria são manipuladores por excelência. Quer isto dizer que, na sua relação com o outro começam por injectar uma dose de ignorância através de perguntas ou constatações cuja resposta ou razão nunca é linear. De seguida, injectam o sentimento de culpa, responsabilizando o outro pelas suas expectativas goradas. Finalmente, o golpe de misericórdia vem na figura a ansiedade. Ou seja, na sua relação com o outro é injectado um sentimento negativo de si mesmo por não ter correspondido às expectativas que lhe foram atribuídas, mas que nunca foram suas em primeiro lugar.

Perguntar-me-ão vocês, devem estas criaturas ser consideradas heréticas? De forma alguma. Estabelecer um juízo de valor desta natureza, seria entrar num duelo de vontades inútil. Seria não respeitar aquilo que os torna diferentes e isso tornar-nos-ia iguais.

O meu respeito por mim próprio advém daquilo que me torna diferente dos outros e não daquilo que me torna igual aos outros. Da mesma forma que o meu respeito pelos outros, advém daquilo que os torna diferentes e não daquilo que os torna iguais. E isto tudo porquê? Porque a riqueza das relações está naquilo que nos torna diferentes uns dos outros e não na conversão do outro num ser igual a nós.

Assim, quer no contexto familiar, quer fora dele, todas as relações estabelecidas com base na confiança passam pela aceitação daquilo que é diferente em cada um de nós e quando por algum motivo, essas relações são abaladas significa pelo menos duas coisas:

1º que um dos sujeitos não estava a aceitar o facto do outro ser diferente;

2º que um dos sujeitos estava a manipular o outro;

Nestas situações, o reequilibrio destas relações nunca se faz, nem de um momento para o outro, nem pode ser forçado só porque sim.

De forma alguma pretendo dizer que as pessoas que procedem desta maneira, o fazem intencionalmente. Muitas da vezes, senão na sua maioria, estes indivíduos acreditam mesmo que estão a agir da forma correcta e acreditam que eles é que estão certos. E de certa forma, estão. Só que somente estão certos dentro da perspectiva que defendem e isto não é necessariamente compatível com a perspectiva do outro.

E agora para concluir (que isto já parece mais um ensaio do que outra coisa), relativamente à mensagem que me foi enviada, não respondi. Não porque não quisesse, mas porque sou um teso e não tenho saldo no telemóvel. Quanto à descodificação da dita, bom... apenas posso dizer que as opiniões variam consoante o sujeito e essa teria sido exactamente a minha resposta.

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